domingo, 13 de julho de 2014

Quem tem vergonha do 7x1?

Não tenho vergonha de perder de 7x1 para a Alemanha. A campanha na Copa do Mundo não foi boa, mas a da Copa das Confederações, há 1 ano atrás,  que teve médias de gols a favor e contra por partida melhor que a da Alemanha nesta Copa (mesmo com os 7x1), e vitória contra as seleções da Espanha, Itália e Uruguai. Fazia 2 Copas que não passávamos das quartas. A derrota pelo placar elástico invalida o que o Brasil fez até ali? Com certeza não.

Não que o resultado em si não seja humilhante, mas parece que nós brasileiros não sabemos lidar com a derrota, talvez pela avesso à adversidade.

Acontece que a vida é cheia de adversidades. Se vc for demitido, reunicará sua família, mudará de cidade e começará uma nova vida só por se sentir humilhado? Ou cometerá um harakiri? Não, vc organiza a casa, prepara um currículo (ou um projeto profissional diferente) e sai à luta. Se sabemos fazer isso com nossas vidas, pq não como torcedores?

A reação de parar de torcer pro Brasil, ou torcer contra, me parece desproporcional.
Futebol é o esporte mais universal que existe, com táticas complexas e sofisticado. E é um esporte de poucos pontos, o que dá margem pra aleatoriedade, pro fraco ganhar do forte, pra viradas históricas, pra goleadas dolorosas, e é isso que o faz ser tão emocionante.

Nossa atitude agora, como torcedores, deve ser de entender as falhas do Brasil e cobrar uma resolução dessas falhas, e não de abandonar o barco. Temos muitos exemplos de boas e básicas práticas que não seguimos.

1-Vamos começar pelo âmbito mais abrangente, a organização do esporte. A MLS (principal liga americana), antes dessa Copa, já tinha uma média de público maior que do Campeonato Brasileiro. A MLS é uma empresa, interessada no desenvolvimento completo do esporte, do mercado do futebol. O futebol (futebol futebol mesmo, não o americano), já o esporte mais praticado entre os jovens americanos. Aguardem os EUA em 2022 com condições de disputar o título (e não apenas como uma seleção pequena, aguerrida e simpática). A primeira medida seria uma reforma da CBF para os moldes da MLS -uma mudança de mentalidade de cartola pra empresário. Desenvolver o campeonato interno é a melhor forma de desenvolver o esporte no país, e do jeito que está, com a dinastia Havelange ainda no poder, isso não ocorrerá.

2-Em continuidade de trabalho, os melhores exemplos vem do Barcelona, do Manchester United e da própria seleção alemã. Quando Pep Guardiola saiu do Barcelona, quem assumiu foi o Tito Vilanova, seu auxiliar técnico, que comandou o Barcelona B em 2007 e 2008 e foi auxiliar técnico de 2008 a 2012. Quando assumiu o time principal, apesar de não ter qualquer outra experiência como técnico, tinha 5 anos no clube. Conhecia o time, o estilo e os jogadores. Tito fazia a melhor temporada do Barcelona até começar a lutar contra o câncer (ele faleceu em abril deste ano). 

Alex Fergusson comandou o Manchester United por 25 anos, e ganhou o título de "sir". Foi o técnico que mais ganhou Premier Leagues, o campeonato inglês, 13 vezes. O primeiro título foi em 92, 6 anos depois de sua estreia como treinador do clube, em 86. Dá pra imaginar isso acontecendo no futebol brasileiro? Com a mentalidade atual, é impossível. Mas foi oq ue levou pra se iniciar a fase mais vitoriosa de um clube inglês.

Por último, o líder do nosso mais recente algoz e o técnico campeão do mundo, Joachim Lowe. Lowe não havia ganhado NEM UM TÍTULO desde que assumiu a seleção alemã, em 2006. O primeiro foi a Copa de 2014. Até lá foram 8 anos à frente da seleção alemã e foi duramente criticado pela mídia no início do seu trabalho.

Uma vez que não temos entre os melhores técnicos do mundo um brasileiro, seria uma boa colocar um estrangeiro para comandar a seleção, para dar uma cara e estilo próprios ao Brasil, como o trabalho que os técnicos acima fizeram em seus times. O fato de isso não ter sido seriamente considerado pela CBF depois da derrota de 2010 mostra o quão pouco criativo os cartolas são para desenvolverem nosso futebol.

3-A Espanha é tradicional em futebol de salão, já foi campeã várias vezes. Especialista em pequenos espaços e no refinado toque de bola, importou esse estilo para o campo. Como os sistemas defensivos de todas as seleções e times estão muito sólidos, o modelo espanhol, conhecido como tiki-taka, forjou o campeão do mundo de 2010 e a era de ouro do Barcelona.

Com a globalização do futebol fica difícil criar uma identidade para uma seleção, aquele farol que aponta para uma direção que veternos e novatos conseguem enxergar se se entender, e que é pai do entrosamento. Não existe time sem entrosamento, e não se pode cobrar entrosamento sem estilo de jogo. O Brasil não tem um próprio desde 82. Não somos mais a seleção do jogo bonito, e nem da defesa vazada. Que somos então? Não sabemos. Ter um estilo de jogo requer muito tempo de treino e estratégia, mais que uma Copa com certeza. Mas nem a opinião pública, nem a mídia, e logo nem a CBF com a cabeça demagoga que tem, enxergará este ponto e cobrará esta briga.


Temos que cobrar não um técnico heroi, para nos brindar com a taça em 2018. Temos que cobrar um técnico pra sedimentar um estilo de jogo novo, arrojado, que tem os melhores jogadores do mundo, e que formará uma seleção capaz de ganhar ou de perder bonito em 2018, 2022, 2026, 2030...

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Planeta dos Macacos


-“Que merda” – Sofia pensou, enquanto sua nave mergulhava naquele buraco de densidade absoluta.
Tinha que acontecer com ela, claro, a segunda astronauta brasileira a ir ao espaço. No metiê dos astrofísicos, era considerada de terceiro escalão, e tinha uma missão relativamente simples – abastecer a Estação Espacial Internacional com barras de proteína - negociada pelo governo brasileiro em troca de um quarto lugar para a Rússia na Copa do Mundo de 2014.

Não vira bem como fora parar ali. Os sinais estavam estáveis na nave, e o encaixe na órbita estava bastante dentro do desejável. Muito distante da imaginação de uma criança, não era divertido perambular desengonçadamente dentro da espaçonave apertada, executando as rotinas de manutenção, relatórios, e outros afazeres burocráticos. E ainda tinha que aguentar o ego dos colegas “premiados”. É isso: de repente, de excitante aquele trabalho tinha passado a entediante, pois era 90% burocracia.

Bom, não mais. O deslocamento acima da velocidade do som, a ineficiência das turbinas, o estranho comportamento da matéria davam dicas claras: estava sendo sugada por um buraco negro. Não fosse sua curiosidade ficaria desesperada. Só de pensar na unicidade de entrar em um buraco negro sentia-se poderosa, viva, como uma criança deixando-se pender em uma gangorra.

Quando a pressão ficou forte demais, sua mandíbula deslocou-se para o lado, e ela pensou que nunca mais daria uma mordida simétrica na vida. Sentiu que a pressão imobilizava seus movimentos, e o tempo parecia não passar, ou passar vagarosamente. Um clarão seguiu-se de uma surdez absurda, e de repente ela pareceu voltar ao estado normal, como se estivesse orbitando na Lua novamente. A sensação 10% alívio e 90% frustração desapareceu quando se em rota de colisão a um planeta verde.



Pipoca deu uma carinhosa lambida em sua esposa Xereta, despedindo-se para o trabalho. O dia ensolarado pedia buracos, e cavar era sua função. Ao sair, avistou um ponto preto no céu, que foi tornando-se amarelo, amarelo, e maior, e desacelerou, caindo suavemente em um local no horizonte.

À noite, os noticiários falavam de uma nave extraplanetária que tinha caído ali. À sobrevivente, da raça humana, foi oferecida água fresca, tomates, e um pouco de carne. Muitos dos habitantes passaram no local do pouso para lhe dar as boas vindas. Eram cachorros bípedes os habitantes daquele planeta. Tinham uma cordialidade estranha, como se lhes sobrasse... amor.

Depois de alguma discussão sobre quem seria o anfitrião, uma das famílias caninas levou Sofia à sua casa. Era um terreno gramado, com árvores esparsas, e alguns cômodos com teto e paredes de madeira. Não havia portas, maçanetas, ou sistemas sofisticados. Havia uma rampa, no quintal, com visão ampla para o céu, o horizonte descortinado, espalhando cores vívidas daquele planeta excêntrico.

A paisagem era toda assim: fossem planos ou íngremes, havia grandes terrenos atapetados por gramados, com árvores salpicadas em número o suficiente para projetar boas porções de sombra. Ambientes naturais de pedra e madeira formavam os prédios daquela sociedade, com os tamanhos e formatos sendo definidos pelo acaso da natureza.

Sofia andava livremente, conhecendo, descobrindo, maravilhando-se. Durante suas andanças, descobriu que havia humanos ali também, mas não em maior número que os cachorros. Era um acordo cujos termos foram estipulados pelos próprios humanos, segundo ambos lados afirmavam. Pareciam contentes.

A rotina parecia não mudar muito, e era tão feliz que Sofia não se importava. Desde que pousara ali, não tivera saudade da Terra, do seu trabalho, do seu povo. Sentia-se plena, com a simplicidade e harmonia daquele pitoresco planeta.

Passaram-se 10 anos e Sofia continuou vivendo ali. Aprendeu seus hábitos, brincava diariamente com todos. Ali era sempre meiga e gentil; e isso não era piegas, mas a regra. A esses seus gestos - que há um tempo sufocara para sobreviver na Terra - sempre devolviam gentileza e carinho.

Um dia Sofia foi a um centro de escavações, próximo ao mais belo rio e campo verdejante que já vira. Tinham achado ali uma coluna amarela gigante, de uns 30 metros de comprimento e 50 cm de diâmetro. Acharam tb milhares de latas vermelhas escritas “Coca-Cola”, e aparelhos pretos de metal do tamanho de uma pata. Uma placa azul, retangular, dizia “Eng. Luiz Berrini”. Apreciando a brisa da manhã e o ar puro, ela sorriu: aquele planeta não era extraterrestre.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Berne

Tu du. Tu du. O som que o dedo fazia ao bater no calombo do peito era surdo e estranho, pra se dizer o mínimo. Na verdade não era tão estranho assim, ou pelo menos não seria se não fosse um barulho associado àquele corpo estranho que aparecia na tórax.
O calombo apareceu a primeira vez há uns 3 dias. Era calor e foi um dia muito corrido no DETRAN.

-“Benhê, vc viu o que aconteceu hj? O pessoal da licitação do metrô entrou com um recurso. Ganharam e estão de volta à ativa.”
-“Esse bando de FDP sem escrúpulos...”
-“Que dia vc vai ver esse calombo?”
-“Não sei do que vc tá falando, mas se é daquela viagem sua, marquei consulta pra amanhã.”

No dia seguinte...
-“Joaquim, não sou cubano e a chapa não mente. Um pedaço do seu coração que está faltando.”
-“Sei não, doutor, tô vendo ele inteirinho aí...”
-“Não sei como ser mais claro que isso. Isso não atrapalha o funcionamento do seu corpo, mas pode ter um alto impacto no seu comportamento.”
-“Bom, eu vou nessa. Pode me dar um atestado?”
-“Não, não posso. Essa moléstia será melhor curada se vc trabalhar normalmente.”

Saindo de lá...
-“Corram, corram, insetos gigantes estão invadindo o Domo Nacional...!”

O Domo Nacional era a sede do governo. Ali, os principais funcionários dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário trabalhavam todos os dias. Neste momento uma cena surreal se passava ali, com moscas do tamanho de um adolescente, em ternos rasgados, voejando em um zigue zague barulhento. O aeroporto dessa cena funesta era o topo do Domo, onde havia uma janela ampla pela qual os monstros entravam.

Estarrecido com aquela cena, Joaquim correu em direção ao portão da praça do Domo, onde as pessoas de aglomeravam. Além do portão havia um declive para um descampado, que dava para a entrada do prédio semiesférico.

-“Eu, tá saindo uma asa de vc, cara...”
-“Não sei do que vc tá falando, minhas costas vão muito bem, obrigado.” – concluiu Joaquim. Rindo internamente daquele alerta descabido.

Nos dias seguintes, a bizarrice aumentou mais e mais. Larvas e ovos eram vistos por todos os lugares. Aquele fenômeno, que começou a ser descrito como Praga da Berne, se espalhou por toda a nação. E aquela nação ficou conhecida como o País das Moscas. Os elevadores não mais eram necessários, pois as moscas-gente voavam direto para seus prédios e entravam pelas janelas.

Sem nunca ter visto isso antes e sem saber o que fazer, o Ministro da Saúde importou antibióticos avançadíssimos, e aplicou em seus familiares, na esperança de salvá-los. Não adiantou, mas ele pareceu piorar. No lugar dos seus olhos azuis nasceram 2 grandes bolas vermelhas, cortadas em malha por membranas negras. Eram olhos de mosca.

O país foi se deteriorando e o primeiro serviço a cair foi o sanitário. Agora, toda a sujeira estava à mostra, e boa parte da população parecia gostar daquilo. Ovos se misturavam a propinas, asas aos subornos, babas aos “favores”.

Nem todos os habitante do País da Mosca tinham a praga. Alguns deles sofriam, por terem moscas em suas famílias, no seu trabalho, e entre seus amigos.
Viveram assim por 500 anos.

Até que um dia um forasteiro chegou no país. Tinha uns 50 anos, usava roupas de trabalhador rural. A pele era queimada de sol e enrugada de honra. Ao caminhar pelas ruas da capital do País das Moscas, o forasteiro era abordado. As pessoas queixavam-se do lixo, da podridão e do aspecto grotesco da população. E alegavam que a culpa era da Praga da Berne.

Um rapaz, mais eufórico, falou pra ele com os olhos esbugalhados: “Vc acha que é justo? Eu aqui, todo humano, todo limpo, viver assim no meio de moscas?”
O forasteiro retirou um canivete da bota, e extraiu um calombo do rapaz. Uma larva branca e nojenta se debatia no chão. Pus escorreu, a face do cidadão amenizou-se e descontraiu-se, transformando o rosto retesado de cólera em uma expressão de estupefação.

-“Quem é vc?” – perguntou o rapaz.
-“Eu sou um forasteiro, e fruto da sua imaginação. Se quiserem livrar o seu país desta praga, terão vcs mesmos que encontrarem suas bernes e extirpá-las” – entregou o canivete ao rapaz, saiu andando, e desapareceu. 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Novas fábulas brasileiras - Volume 1


Caturama Febiriçá era um indiozinho que vivia em uma floresta linda. Ali tinha mais bichos-preguiça que em toda a região vizinha. Ele gostava de panhar as frutas pela floresta, especialmente as vermelhas, ao mesmo tempo azedas e doces. É claro que pra ele não eram azedas e doces, ele não conhecia essa classificação; pra ele essas plantas tinham um tipo específico de sabor, que não se incomodou em nomear, mas quando pensava era vermelho e pequeno.

Desde criança era o colhedor de lenhas da aldeia. Aos 7 anos, trazia toda a lenha do desjejum. Aos 10, desjejum, almoço, e rituais de adoração ao fogo e ao rio. Aos 16 era responsável por todo o abastecimento da aldeia, colhendo mandiocas, transportando lenhas e potes e mais potes de água.

Pela manhã, sentia uma disposição incomum aos seus colegas da tribo, sempre entusiasmado a atender favores além dos seus afazeres diários. De tanta atividade, Caturama ficou com o lombo preto de tanto trabalhar no sol. Aos 18 anos, do marrom-claro-avermelhado passou para o negro-amarronzado. Ficou bem negro mesmo.

Um malfadado dia, Caturama se envolveu com a filha do pajé, desonrando-a. Seu vigor físico, enrijecido por anos e anos de trabalho, ficou evidente no corpo da mocinha, marcado em vergões pela vontade de Caturama.

Naquela tribo, desonrar era questão de vida ou morte. Mas o pajé sabia do papel de Caturama na tribo, o quão vital era. Ele seria o cacique, sem dúvida, mas aquilo não podia passar em branco. Então o pajé decidiu puni-lo com uma maldição: “Seu cheiro será repugnante a quem te encontrar a primeira, a segunda, a terceira vez. Depois, se acostumarão e até gostarão. E então irás morrer.”

Todos da tribo passaram a evitar seu contato, pois não gostavam do seu cheiro. Sozinho, Caturama recolheu-se ao que era mais natural a ele, o trabalho. Quando passava longas jornadas na labuta seu cheiro se acentuava, e ficava ainda mais isolado.

Foi rejeitado por todas as mulheres da tribo durante muitos anos. Até que, de tanto sentirem seu cheiro, se acostumaram e se apaixonaram. E então ele morreu. Muitas pessoas ficaram perto do seu corpo enquanto ele se decompunha, pois o aroma era fantasticamente agradável, e queriam beber aquele cheiro quente, acolhedor e animador ao mesmo tempo.

Naquele local nasceu uma fruta vermelha e de sabor exótico. Chama-se café.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

3 batidas secas


Foram 3 batidas secas seguidas por uma forte e aguda, dando indícios de que a madeira resistente da porta tinha cedido.

O “como é horrível acordar assim”passou por sua cabeça junto com “tenho que fazer alguma coisa". Felizmente seu instinto de reação era forte, e a pergunta que tinha se feito há muitos anos atrás, se iria cristalizar se este momento chegasse, foi respondida: não cristalizara.
“O mundo é um lugar violento e cruel, e meu maior pesadelo está se tornando verdade”, refletiu enquanto entrava no closet. Ele sabia que teria poucos segundos pra se preparar, esquematizar sua reação, e se decidir se iria reagir de fato.

Talvez por azar ele lera no mesmo dia sobre uma jovem garota que foi estuprada e jogada na estrada por demonios humanos. A cara do seu namorado, esgarçada de dor abissal e choro gutural não lhe saíra da cabeça. Também contou o café que tinha tomado depois do jantar; sempre lhe incomodora tomar café e dormir, pelo sono inquieto. Combinados com seu trauma antecipado, de ter sua casa invadida e sua família violentada das formas mais hediondas, estes fatores levaram-no a optar pelo caminho mais drástico: reagir a bala. A decisão foi um pouco fisiológica, muito inconsciente, bastante veloz.

Rolou sobre seu próprio corpo e deu uma cambalhota rasteira, alcançando o closet com apenas 2 movimentos. Seu corpo já não era jovem, e seu gordo couro não ajudavam, mas o café e o medo, ah, o café e o medo…

O primeiro grito que ouviu foi o esganido e agudo latido de sua pintcher, Madonna. Ela era corajosa, e por isso temia que sofresse uma morte demasiado precoce em uma situação assim. Depois pôde ouvir por trás da porta do closet sua esposa gritando, e um dos demonios sufocando-a e subindo em cima dela. Agradeceu a frieza que o fez aguardar até o momento em que o demonio estava mais distraido, e pegou o .380 do fundo do nicho mais alto. Sentiu na boca o gosto metálico do frio cabo da pistola.
Quando sua esposa gemeu desesperada e abafadamente e o sujeito riu com um grunhido apático e medonho, ele explodiu com uma bica a porta do closet, sincronizando o estardalhaço da porta com os próximos 3 tiros que cravou no peito do seu inimigo, esmagando os gatilhos com fúria e precisão. Bebeu o filme da expressão do invasor, que em poucos milisegundos metamorfoseou: de riso pra espanto, de espanto pra dor, de dor pra desespero, de desespero pra nada.

Partiu pé ante pé, marchando firme e suavemente para o próximo comodo, onde o segundo invasor sufocava sua cachorra e brincava com um 38 nos cabelos de sua filha, coitada dela, chorando de medo e pavor.

Agarrou um vaso chinês com a mão espalmada e os dedos abertos (que nunca soube se era falso ou não, tinha comprado em um brechó em sua última viagem a Xangai, mas o mundo andava tão estranho que até coisas chinesas vendidas na China poderiam ser falsificadas) e estilhaçou o vaso no cocuruto ralo do sujeito.

Ainda incrédulo, o segundo invasor tomou uma coronhada na cabeça, com o calcanhar da pistola, e sentiu de imediato um galo de sangue se formar. Pasmando, não reagiu. Poderia tomar a filha como refém, ou mesmo atirar nela, mas seu relógio estava muito mais lento que daquele homem, estranhamento gordo e ágil, que desferiu o terceiro golpe abocanhando seu pulso que segurava a arama. O canino trespassou a derme, e depois a epiderme, e depois o tecido cojuntivo, e roçou o osso.

Já vencido, o bandido sentiu na boca o gosto de metal frio, quando o aço negro preencheu-lhe do céu da boca à parede da garganta, e empatizou-se com o pai de família, sem dúvida apadrinhado por uma vontade do Cosmos de levar a cabo a justiça naquela noite, e até consentiu com o destino quando recebeu as 3 batidas secas do slide da pistola em coices violentos, tiro após tiro.

O pai, desmoronando no chão, com a pistola horizontal e frouxa na mão, segurada apenas pelo indicador, limpou o suor da testa com as costas do ante-braço. Franziu o cenho no esforço que fez para mergulhar na sua alma, e levando-a até Deus disse: "Matar alguém é uma das sensações mais horríveis que existem. Mas agradeço do fundo desta minh'alma que cá está, falando contigo, me permitir fazer isso pra proteger minha família".

Minecraft


-“OK, vc tem 5 minutos com o criador” – Bradou com voz de trompete um anjo vestido com uma túnica branca, com um aspecto de pesada e fofa ao mesmo tempo, acentuando o calor visual que aquela quantidade enorme de luz transmitia.

-“Caramba, que honra!” – Exclamou Rodolfo.

-“É... nem tanto, nem tanto. Todos que morrem tem um tempinho com ele. Ensaie na cabeça o que vai perguntar pra fazer bom uso do seu.”

Rodolfo adentrou o palácio de nuvens, passando portas douradas muito altas -  aparentemente sem função, uma vez que não havia paredes nas laterais. O local cheirava a êxtase e glória eterna. Do céu descia se projetando em direção a ele uma luz densa, e apesar da forma etérea, a sensação de que se estava diante de alguém era inequívoca, como um sonho em que a forma é de uma pessoa, mas na verdade em essência é outra pessoa. Embora neste caso não houvesse exatamente uma forma.

-“Pode me dizer o que queres saber, meu filho.”

-“Eu queria saber o sentido da Vida, o Universo e Tudo o Mais.”

-“Rodolfo, meu filho, existem 2 livros sobre isso: A Bíblia e o Guia do Mochileiro das Galáxias.”

-“Por favor, Altíssimo, não quero desrespeitá-lo, mas só tenho 5 minutos com o Senhor...”

-“OK, falando sério agora. A Humanidade sabe a resposta disso há muito tempo. Meus filhos são ótimos em teorizar, mas às vezes deixam escorrer pelo seu coração o sentido dos seus aprendizados.

Há muito tempo dizem que o círculo é uma forma perfeita. Então pq insistem no quadrado? O círculo é a forma que escolhi para o Universo, e é só com ele que serão felizes. Ele está na curvatura do espaço, na parábola do planeta, nas formas admiradas do design, na invenção mais celebrada pelo Homem, no ciclo da vida e no ritmo das emoções. Então pq insistem tanto em transformar tudo em quadrado? Linhas sempre retas, quarteirões, cubos, processos, pixels, precipícios, interrupções abruptas. Mas vcs tem que aprender que nem tudo deve se encaixar perfeitamente pra ser perfeito.

Quadrado é a forma que os deixam seguros. Mas a felicidade, ah, Rodolfo, a felicidade está no círculo!”