Tinha que
acontecer com ela, claro, a segunda astronauta brasileira a ir ao espaço. No
metiê dos astrofísicos, era considerada de terceiro escalão, e tinha uma missão
relativamente simples – abastecer a Estação Espacial Internacional com barras
de proteína - negociada pelo governo brasileiro em troca de um quarto lugar
para a Rússia na Copa do Mundo de 2014.
Não vira bem
como fora parar ali. Os sinais estavam estáveis na nave, e o encaixe na órbita
estava bastante dentro do desejável. Muito distante da imaginação de uma criança,
não era divertido perambular desengonçadamente dentro da espaçonave apertada,
executando as rotinas de manutenção, relatórios, e outros afazeres
burocráticos. E ainda tinha que aguentar o ego dos colegas “premiados”. É isso:
de repente, de excitante aquele trabalho tinha passado a entediante, pois era
90% burocracia.
Bom, não
mais. O deslocamento acima da velocidade do som, a ineficiência das turbinas, o
estranho comportamento da matéria davam dicas claras: estava sendo sugada por
um buraco negro. Não fosse sua curiosidade ficaria desesperada. Só de pensar na
unicidade de entrar em um buraco negro sentia-se poderosa, viva, como uma
criança deixando-se pender em uma gangorra.
Quando a
pressão ficou forte demais, sua mandíbula deslocou-se para o lado, e ela pensou
que nunca mais daria uma mordida simétrica na vida. Sentiu que a pressão
imobilizava seus movimentos, e o tempo parecia não passar, ou passar
vagarosamente. Um clarão seguiu-se de uma surdez absurda, e de repente ela
pareceu voltar ao estado normal, como se estivesse orbitando na Lua novamente.
A sensação 10% alívio e 90% frustração desapareceu quando se em rota de colisão a um planeta verde.
Pipoca deu
uma carinhosa lambida em sua esposa Xereta, despedindo-se para o trabalho. O dia
ensolarado pedia buracos, e cavar era sua função. Ao sair, avistou um ponto
preto no céu, que foi tornando-se amarelo, amarelo, e maior, e desacelerou,
caindo suavemente em um local no horizonte.
À noite, os
noticiários falavam de uma nave extraplanetária que tinha caído ali. À sobrevivente,
da raça humana, foi oferecida água fresca, tomates, e um pouco de carne. Muitos
dos habitantes passaram no local do pouso para lhe dar as boas vindas. Eram
cachorros bípedes os habitantes daquele planeta. Tinham uma cordialidade
estranha, como se lhes sobrasse... amor.
Depois de
alguma discussão sobre quem seria o anfitrião, uma das famílias caninas levou Sofia à sua casa. Era um
terreno gramado, com árvores esparsas, e alguns cômodos com teto e paredes de
madeira. Não havia portas, maçanetas, ou sistemas sofisticados. Havia uma rampa,
no quintal, com visão ampla para o céu, o horizonte descortinado, espalhando cores
vívidas daquele planeta excêntrico.
A paisagem
era toda assim: fossem planos ou íngremes, havia grandes terrenos atapetados por gramados, com árvores salpicadas em número o suficiente para projetar boas
porções de sombra. Ambientes naturais de pedra e madeira formavam os prédios
daquela sociedade, com os tamanhos e formatos sendo definidos pelo acaso da
natureza.
Sofia andava
livremente, conhecendo, descobrindo, maravilhando-se. Durante suas andanças, descobriu que havia humanos ali também, mas não em maior número que os
cachorros. Era um acordo cujos termos foram estipulados pelos próprios
humanos, segundo ambos lados afirmavam. Pareciam contentes.
A rotina
parecia não mudar muito, e era tão feliz que Sofia não se importava. Desde que
pousara ali, não tivera saudade da Terra, do seu trabalho, do seu povo.
Sentia-se plena, com a simplicidade e harmonia daquele pitoresco planeta.
Passaram-se
10 anos e Sofia continuou vivendo ali. Aprendeu seus hábitos, brincava diariamente
com todos. Ali era sempre meiga e gentil; e isso não era piegas, mas a regra. A
esses seus gestos - que há um tempo sufocara para sobreviver na Terra - sempre
devolviam gentileza e carinho.
Um dia Sofia
foi a um centro de escavações, próximo ao mais belo rio e campo verdejante que
já vira. Tinham achado ali uma coluna amarela gigante, de uns 30 metros de comprimento
e 50 cm de diâmetro. Acharam tb milhares de latas vermelhas escritas “Coca-Cola”,
e aparelhos pretos de metal do tamanho de uma pata. Uma placa azul, retangular,
dizia “Eng. Luiz Berrini”. Apreciando a brisa da manhã e o ar puro, ela sorriu:
aquele planeta não era extraterrestre.