quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Berne

Tu du. Tu du. O som que o dedo fazia ao bater no calombo do peito era surdo e estranho, pra se dizer o mínimo. Na verdade não era tão estranho assim, ou pelo menos não seria se não fosse um barulho associado àquele corpo estranho que aparecia na tórax.
O calombo apareceu a primeira vez há uns 3 dias. Era calor e foi um dia muito corrido no DETRAN.

-“Benhê, vc viu o que aconteceu hj? O pessoal da licitação do metrô entrou com um recurso. Ganharam e estão de volta à ativa.”
-“Esse bando de FDP sem escrúpulos...”
-“Que dia vc vai ver esse calombo?”
-“Não sei do que vc tá falando, mas se é daquela viagem sua, marquei consulta pra amanhã.”

No dia seguinte...
-“Joaquim, não sou cubano e a chapa não mente. Um pedaço do seu coração que está faltando.”
-“Sei não, doutor, tô vendo ele inteirinho aí...”
-“Não sei como ser mais claro que isso. Isso não atrapalha o funcionamento do seu corpo, mas pode ter um alto impacto no seu comportamento.”
-“Bom, eu vou nessa. Pode me dar um atestado?”
-“Não, não posso. Essa moléstia será melhor curada se vc trabalhar normalmente.”

Saindo de lá...
-“Corram, corram, insetos gigantes estão invadindo o Domo Nacional...!”

O Domo Nacional era a sede do governo. Ali, os principais funcionários dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário trabalhavam todos os dias. Neste momento uma cena surreal se passava ali, com moscas do tamanho de um adolescente, em ternos rasgados, voejando em um zigue zague barulhento. O aeroporto dessa cena funesta era o topo do Domo, onde havia uma janela ampla pela qual os monstros entravam.

Estarrecido com aquela cena, Joaquim correu em direção ao portão da praça do Domo, onde as pessoas de aglomeravam. Além do portão havia um declive para um descampado, que dava para a entrada do prédio semiesférico.

-“Eu, tá saindo uma asa de vc, cara...”
-“Não sei do que vc tá falando, minhas costas vão muito bem, obrigado.” – concluiu Joaquim. Rindo internamente daquele alerta descabido.

Nos dias seguintes, a bizarrice aumentou mais e mais. Larvas e ovos eram vistos por todos os lugares. Aquele fenômeno, que começou a ser descrito como Praga da Berne, se espalhou por toda a nação. E aquela nação ficou conhecida como o País das Moscas. Os elevadores não mais eram necessários, pois as moscas-gente voavam direto para seus prédios e entravam pelas janelas.

Sem nunca ter visto isso antes e sem saber o que fazer, o Ministro da Saúde importou antibióticos avançadíssimos, e aplicou em seus familiares, na esperança de salvá-los. Não adiantou, mas ele pareceu piorar. No lugar dos seus olhos azuis nasceram 2 grandes bolas vermelhas, cortadas em malha por membranas negras. Eram olhos de mosca.

O país foi se deteriorando e o primeiro serviço a cair foi o sanitário. Agora, toda a sujeira estava à mostra, e boa parte da população parecia gostar daquilo. Ovos se misturavam a propinas, asas aos subornos, babas aos “favores”.

Nem todos os habitante do País da Mosca tinham a praga. Alguns deles sofriam, por terem moscas em suas famílias, no seu trabalho, e entre seus amigos.
Viveram assim por 500 anos.

Até que um dia um forasteiro chegou no país. Tinha uns 50 anos, usava roupas de trabalhador rural. A pele era queimada de sol e enrugada de honra. Ao caminhar pelas ruas da capital do País das Moscas, o forasteiro era abordado. As pessoas queixavam-se do lixo, da podridão e do aspecto grotesco da população. E alegavam que a culpa era da Praga da Berne.

Um rapaz, mais eufórico, falou pra ele com os olhos esbugalhados: “Vc acha que é justo? Eu aqui, todo humano, todo limpo, viver assim no meio de moscas?”
O forasteiro retirou um canivete da bota, e extraiu um calombo do rapaz. Uma larva branca e nojenta se debatia no chão. Pus escorreu, a face do cidadão amenizou-se e descontraiu-se, transformando o rosto retesado de cólera em uma expressão de estupefação.

-“Quem é vc?” – perguntou o rapaz.
-“Eu sou um forasteiro, e fruto da sua imaginação. Se quiserem livrar o seu país desta praga, terão vcs mesmos que encontrarem suas bernes e extirpá-las” – entregou o canivete ao rapaz, saiu andando, e desapareceu. 

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